Perguntada sobre quais teriam sido os melhores anos de sua vida, uma grande dama do Ballet Bolshoi respondeu “De 1935 a 1940”. Confrontada com o fato de que estes foram justamente os anos mais violentos dos expurgos stalinistas, a veterana bailarina suspirou: “Ah, mas eu era jovem e bonita!”.
Descompasso entre a vida pessoal e o ambiente social é mais do que frequente. Sincronizar os relógios externo e interno é a finalidade de 98,7654321% dos livros de autoajuda, das dicas de gurus esotéricos, e dos aforismos kibados no twitter.
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Entrei nos anos 90 viajando muito, movido por minha arte/ofício. Nos rádios das vans e táxis que me levavam de hotéis a aeroportos, era onipresente uma canção que me irritava pela melodia melosa e pela letra medíocre (e por ser trilha sonora de um blockbuster meloso e medíocre estrelado por Tom Cruise). A azeitona no pastel da minha irritação era o fato de a música ser carregada por uma linha de baixo fretless sintetizado. Dóóin do dóóin do dóóin...
Hoje, minha agenda é um pouco mais tranquila. Nem tanto pela diminuição do número de viagens, que se mantém alto, mais pelas facilidades que foram pintando com o tempo. Há mais opções de voo, há um monte de canais na TV do hotel, um monte de traquitanas digitais para desviar meus olhos e coração do imóvel painel eletrônico que avisa quão atrasado meu voo está.
Recentemente, num táxi para algum aeroporto, depois de muito tempo fui alvejado novamente pela melodia do baixo synth: dóóóin do dóóóin do dóóóin... take my breath awaaaaaaaay. Surpreendentemente, a música causou em mim efeitos geralmente reservados aos meus artistas favoritos. Eu sabia que não gostava dela, mas estava adorando ouvi-la.
Quem teria mudado, eu ou a música? Ou aquilo já não era mais uma música, transformara-se em um portal para outro tempo? É provável. A sensação era parecida com a vertigem de uma decolagem muito rápida em que estímulos físicos (súbita mudança de altitude) se misturam com estímulos psicológicos (partir, chegar - súbita mudança de atitude).
Quem teria mudado, eu ou a música? Ou aquilo já não era mais uma música, transformara-se em um portal para outro tempo? É provável. A sensação era parecida com a vertigem de uma decolagem muito rápida em que estímulos físicos (súbita mudança de altitude) se misturam com estímulos psicológicos (partir, chegar - súbita mudança de atitude).
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Quando alguém fala comigo sobre minha arte/ofício, o que ouço são informações sobre meu interlocutor...
{ putz, que merda de frase pra começar um parágrafo – dificuldade de me concentrar no texto nesta manhã insone no aeroporto de Guarulhos – a mistura do som de um monte de gente falando e anúncios de embarque não ajuda – vou colocar os fones – música! sobe um muro de silêncio à minha volta – agora vai – refazendo a frase: } ...
{ putz, que merda de frase pra começar um parágrafo – dificuldade de me concentrar no texto nesta manhã insone no aeroporto de Guarulhos – a mistura do som de um monte de gente falando e anúncios de embarque não ajuda – vou colocar os fones – música! sobe um muro de silêncio à minha volta – agora vai – refazendo a frase: } ...
... quando falamos de arte, estamos falando de nós mesmos. Você acha Bach muito metódico e a voz do Neil Young muito chorosa? Isso revela muito de você, pouco do alemão e do canadense. Quando alguém me diz que este ou aquele é meu melhor disco/livro/música/banda está dizendo tanta coisa...
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Alexandre Master é o melhor técnico de som do mundo e um dos 15 melhores do Rio Grande. Talvez por conta disso, sua mãe colecionava seus cartões de embarque (quando eram feitos de um papel digno de ser guardado). Nah... Pensando bem, acho que Dona Cecy guardaria os cartões mesmo que ele fosse apenas um profissional razoável. Mãe é mãe.
Guardar fatias da vida de outras pessoas (do pai, da filha, Dylan, Justin Bieber...) é mais fácil do que guardar porções da própria que, ao serem vividas, somem para sempre.
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Malandragem porca: descobri que alguns sites têm mau funcionamento proposital (são projetados com links lentos e caminhos mais longos do que poderiam ser) para que as pessoas passem mais tempo ali. Por que? Porque eles faturam vendendo aos anunciantes momentos da nossa atenção, segundos da nossa vida. Se criam uma areia movediça, uma teia de aranha gosmenta, faturam mais. É o que, hoje, chamamos de "gratuito", falando a língua mundial: free (palavra que, originalmente, significava "livre").
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Pela dificuldade de classificação, o ornitorrinco (animal considerado a prova de que Deus tem senso de humor) é uma metáfora tão gasta quanto eficiente para misturas mal-ajambradas; mix de alhos com bugalhos.
Na idealização do passado, os saudosistas criam desengonçados ornitorrincos: o cara é a favor de um mundo sem fronteiras mas sente saudade do tempo em que as nações eram mais fechadas; é a favor de um mundo menos desigual mas sente saudade de um tempo com menor mobilidade social; é fã do vinil desde que a bolachona preta possa se materializar em sua casa vindo pelo cabo da www.
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Belchior cantou que o passado é uma roupa que não nos serve mais. Pode ser. Também pode ser um tecido cortado, costurado, recortado, recosturado, infinitamente... Em permanente construção. Tão incerto quanto o futuro.
Ops, chamou meu voo. Fui.
abraço
18set2012