- Porra, cara, quase 5 da manhã! Eu não devia estar tomando chimarrão. Aí é que o sono não vem!
- …
- Ah, foda-se, preciso tirar da boca o gosto amargo da noite. Nem que seja com um mate amargo.
- …
- Esse lance da “razão”, cara, é só uma das cartas na mão. Pode até ser o ás de espadas; mas o coringa certamente ela não é! Ah, não é mesmo! Mesmo que fosse, ainda assim seria só mais uma carta no baralho.
- …
- Em qualquer papo, o último a abandonar a racionalidade sai por cima. Mesmo que esteja blefando. E tô pra te dizer que é o que sempre acontece. Blefe. O último a abandonar a razão também abandona a razão. Dããã!
- …
- Todos abandonam. Cedo ou tarde a racionalidade nos deixa na mão. Poker. É tudo um jogo. O rei, a dama, o coringa, é só papel. Origami. Tigres de papel.
- ...
- Né?
- ...
- Pô, tú tá quieto, não diz nada. Tá me ouvindo? Ô!
- Hein?
- Tá me ouvindo, cara?
- Pô, foi mal: eu tava de fone.
- PQP! (rsrsrsrsrs)
- Que é?
- Ah, nada não.
- Falaí!
- Tava dizendo que a razão é uma estrada. Ela começa toda bacana, asfalto lisinho, uma Autobahn. Aí vão pintando buracos e quando a gente se dá conta, tá atolado no barro. E se seguir, vai acabar abrindo picada com facão na selva fechada. Mais pra frente, até o facão dança, só sobra a selva. Fechada. A estrada foi pro saco. Tudo acaba em dogma. A razão só vai até ali. Quer dizer, para uns tudo já começa em dogma. Já não sei quem tem razão, quem começa ou quem acaba no dogma. Eu falei “tem razão”? Bah! (rsrsrsrsrsrsrsrsrs)
- Hein?
- Tá de fone de novo, mané?
- Nah, agora cochilei. Foi mal.
- (rsrsrsrsrs)
- Já notou que, quando a gente tira um dos fones o som baixa muito mais do que 50%.
- O quê?
- Quando a gente tira o fone de um só ouvido, o som fica mais baixo do que a metade, já sacou?
- Grande merda, e daí?
- Seguinte: o som de cada fone (left e right) é o lance objetivo, a realidade. Quando a gente coloca os dois, o cérebro entra no jogo e cria um troço maior do que a realidade, uma soma maior do que as partes – e isto é subjetivo.
- ...
- Rá! Te deixei quieto! (rsrsrsrsrs)
- Sem comentários.
- ...
- O que tú tava ouvindo aí?
- Hein?
- Hein?
(*)
Não lembro como chamávamos o instrumento de percussão que, nos tempos de colégio, fazíamos colando, com esparadrapo, duas latas de cerveja recheadas de arroz. Talvez fosse “chocalho”. Certamente ainda não era “shaker”. É este o nome usado hoje. Existem em vários formatos. O mais comum é o formato de ”ovo”, que se encaixa muito bem na mão.
Dia desses comprei um desses ovinhos. Enquanto voltava, a pé, pra casa com o novo instrumento, me emocionei com o início de uma canção que tocava no iPod. Peguei o shaker e ataquei alucinado no refrão. Uma senhora que andava na minha frente, sem ouvir o som que explodia nos meus fones, se assustou e saiu correndo. Alguns metros à frente, ela se deu conta do que havia acontecido, ficou sem graça. E eu, com menos graça ainda.
Para quem tava de fone, a entrada da percussão era muito razoável. Para outra pessoa, distraída, que andava pela rua, o início abrupto daquele som era absurdo. O choque entre dois mundos. Cada um deles perfeitamente normal (normal eu me empolgar com a música e detonar o chocalho no refrão – normal ela se assustar com uma cascavel rompendo o silêncio). Juntos, estes dois mundos não funcionavam. Um fazia o outro parecer ridículo.